segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre amor e morte


  E ela partiu. Vadia. Simplesmente havia saído e passado por todas as portas que os ligava de alguma maneira. Depois de quase 20 anos envoltos num manto de amor, êxtase, sexo, brigas e mais amor. O mesmo amor que o fez traí-la. Um amor que ele veio a descobrir da pior maneira possível que se entrelaçava com o seu próprio, pulsava ousado a cada passo dado e a cada respiração.  Esta última, antes ofegante e agora pesada; Custando a sair, se esforçando para acreditar.
  Seus motivos? Foram banais, todos. Dar mais cor a uma vida agora tão mais cinza que ofuscada. Atos pensados e repensados, atos que desencadearam todas as desgraças posteriores ocorridas em sua vida.  Era uma cruel piada lembrar-se da graça que enchia seus pulmões ao olhar para os olhos cheios de lágrimas dela. Lágrimas que não lhe causaram nenhum impacto. Pelo menos não tão pequenos a ponto de serem vistos inicialmente a olho e coração nus. Ou vestidos pelo orgulho ou ódio, como preferir.
  Revivendo esses momentos enquanto carregava as flores encostadas no peito tão ferido, se deu conta do quanto sua maldade esbarrava na ingenuidade. Palavras que não deveriam andar juntas, mas que naquele momento eram as únicas cabíveis.
   Sentou na terra fria, não mais que sua pele; encostou sua cabeça no cimento gelado e chorou, de novo. As lembranças o machucavam mais que qualquer dor física conseguiram. Os pulsos cortados, o rosto quase desfigurado não só pela magreza, mas por como ele se sentia, não o impediam de voltar aquela noite toda vez que se olhava no espelho. Pelo contrário, o impelia para o mais perto possível da chuva grossa e da neblina densa que cobriram as nuvens aquele dia. Ele tentava não consolar a si próprio. Apenas dizia que foi por amor. Cego.  O túmulo parecia palpitar a cada soluço e a noite se arrastava até ele, lenta. Fechou os olhos mais uma vez, castigando-se com a ideia de abri-los em seguida e se deixou levar para os momentos mais puros de sua puta vida.

O céu estava quase laranja, e os dois corriam de mãos dadas. 9 anos ou 10 cada, não importava. Ele a havia feito gritar horrores pela rua cheia e mal iluminada em prol de uma aposta boba, que ganhara sem nenhum esforço.

“Por que faria isso?” perguntara ela minutos antes do ocorrido.
“Para que um dia eu possa fazer algo por você”
“Como me apresentar para aquele seu primo? Vamos namorar e casar!”
“Não vai não. Ele cheira a alho e repolho, como sua mãe”
“Não ligo. Nós casaremos, pode apostar.”
 

Tão doce e levada! Sempre querendo o que não estava ao seu alcance. Hora implorando, hora mandando e sorrindo com um cinismo que só ela possuía. No auge da adolescência, virou ateia. Cobrira o corpo de tatuagens  inúteis e alargadores. “Pago pra ver um deus que não me aceitará pelo meu corpo.” Disse em momentos que ele pensava serem de tristeza profunda e solitária.
Um engano que descobrira mais tarde.
Só a viu desabar emocionalmente uma única vez na vida, e foi quando perdeu o pai. Ao viajar para Meca, dizia ter se arrependido. Era fiel a um deus único e exclusivo, criado pela mesma.
 No fim, ela não casou. Nem com o primo nem com nenhum outro. Vieram a se amar 13 anos mais tarde, unidos por laços que não requeriam nenhum tipo de explicação, nem votos. Deve ter sido por isso que ela se esqueceu de amá-lo para sempre. Apesar de seus erros e pecados.
Foi morta. Esfaqueada por ele sem nenhuma piedade, e para incrível desespero revelando uma beleza nunca vista. Uma beleza quase divina. Quase fatal. Uma beleza que teve seu auge vinculado a seu término.
 

“Assassino” Ela disse já nos últimos momentos.
“Amo você” foi sua resposta imediata. 

Tão imediata quando a realidade que lhe estapeou a face no mesmo momento em que a noite fria revelava suas estrelas indiferentes. Era hora de ir. Beijou o túmulo uma vez mais e não quis pedir de volta o pedaço de sua alma que ficava. Mais um. Tinha que ser feito e ele o fez, do mesmo jeito que faria o que planejava a seguir. Levantou-se e pôde sentir as lágrimas que se misturavam com o sorriso que dera de leve. Foi até a coroa depositada onde estava a cabeça da amada, e sussurrou as últimas palavras que conseguiu, antes de nunca mais voltar ali:

“Eu já te perdoei por se deixar ser morta pelas mesmas mãos que te proporcionaram tantos momentos de felicidade. Pelas minhas mãos. Tão nossas em certos momentos. Ei! Estou em um hospital psiquiátrico. Fugi de lá e morrerei antes que me encontrem novamente. O azul embaixo da ponte que visitávamos todo sábado,  nunca me pareceu tão atraente quanto agora. Fui posto lá por amar como só os loucos amam. E por matar como só os animais conseguem. E agora simplesmente te digo adeus Annie. Não me procure no inferno. Ele será minha propriedade particular e não mais aceitarei suas visitas cotidianas durante minha oração das 20h. Eu te imploro. Eu já te perdoei por isso também... E já te perdoei por me mostrar de forma tão clara a felicidade, e dentro do seu espelho a dor. Eu já te perdoei por não me perdoar. E agora tenho que ir Annie. Não, não me chame. Agora é a minha vez de experimentar esse remédio tão amargo. Adeus Annie. Adeus. Solte-me e lembre-se de nunca perdoar-me como eu te perdoou.” 


E pisando descalço e forte na terra firme, foi-se.
(continua)